Para especialista, crise faz parte de transição de modelos de governo e de economia


Midiamax

Após os escândalos políticos e as sucessivas crises econômicas, como compreender o atual momento e saber, enfim, aonde iremos parar? Afinal, o que tem causado tantos conflitos sociais que resultaram, por exemplo, numa polarização ideológica da sociedade brasileira? A futurista e especialista internacional em economia criativa e colaborativa Lala Deheinzelin tem algumas respostas ao alcance da mão e não se nega de compartilhá-las. De acordo com a especialista, os acontecimentos atuais são, na verdade, sintomas de um processo de transição no qual estamos inseridos. Em entrevista ao site Jornal Midiamax, Deheinzelin explica esse processo e apresenta algumas das consequências da transição de modelo que vivemos, a exemplo de mudanças no sistema de gestão governamental e da própria economia, que seguem um fluxo em direção da sustentabilidade e da solidariedade. Confira.

Você defende que estamos vivendo um período de transição, ocorrido após a popularização da internet, na década de 90, que se assemelha ao que o país viveu, por exemplo, no abolicionismo. Como isso funciona?

A internet proporcionou a mudança de modelos de interação e de circulação de conhecimento. Se a gente parar para ver como funcionava na época das monarquias, nós tínhamos uma rede centralizada, em que tudo girava em torno do rei e a economia era um monopólio. A descentralização começa a acontecer com os descobrimentos, com a imprensa, com o surgimento de novas tecnologias como o telégrafo... Isso aumentou o número de conexões entre as pessoas. Consequentemente, isso afeta o modo de produção. A monarquia perde a exclusividade e a burguesia entra nesse esquema, o que resulta, mais na frente, na Revolução Industrial e, consequentemente, na mudança do modelo de gestão. Veio, então, a república, que seguiu até 1996, quando a internet se popularizou. Ela é responsável por uma nova fase sem precedentes na história, porque ela permitiu algo único, que cada um tivesse conectado a qualquer pessoa. É a ligação 'um a um', que permite trocar informações, produtos, tudo feito em rede e de forma colaborativa. E isso muda a maneira das pessoas pensarem, de se relacionarem. É um caminho sem volta e que inevitavelmente também muda o modelo político. Isso acontece porque a vida em rede aumenta a complexidade do coletivo, só o coletivo dá conta do coletivo, não mais um pequeno grupo de pessoas. E por isso nós teremos novos modelo de gestão muito em breve. E muito rápido, porque a velocidade destas transformações já acontece de forma exponencial. Não se sabe com clareza o que será daqui para frente, o que se sabe é que 'será'. Os novos modelos são questão de tempo e estamos bem em meio de uma transição.

Os acontecimentos políticos recentes, como os escândalos de corrupção, o impeachment da presidente Dilma e outros imbróglios fazem parte deste processo de transformação da sociedade?

Claro que sim! É que a gente ainda não se assumiu como 'transicionistas' - eu tenho impressão de que vai ser essa a palavra, que tem aparecido muito. E aqui não estou falando de uma transição 'de Dilma para Temer', mas de modelo, mesmo. Como a gente ainda não enxergou uma terceira saída, estamos imersos numa coisa muito difícil, que é uma polarização que não vai chegar a lugar nenhum. A insatisfação, na verdade, vem pelo desejo por algo que a gente ainda não conseguiu identificar, não temos essa clareza. Como ainda existe uma resistência à mudança, acontece que a gente só age de maneira reativa. Claro que a corrupção é um horror, mas este horror reflete um modelo que não é mais suficiente para a complexidade do mundo. Na copa de 1970 falava-se '90 milhões em ação'. Hoje somos mais de 200 milhões e esse modelo republicano já não dá mais conta. O negócio é a gente perceber isso, ver que a mudança é legal, entender que não há porque ter medo na mudança. Se observarmos a história, veremos que tivemos uma evolução muito grande. Pensemos na vida dos nossos bisavós. Está tudo melhor. E vai tudo ficar melhor.

Se a visibilidade da corrupção e o combate a ela é um sintoma desse processo de mudança de paradigma para melhor, é certo dizer que outra consequência dessa mudança seria o fortalecimento institucional, a lisura de algumas instituições?

Na verdade isso é tanto uma causa como uma consequência. Existe uma obra do M. C. Escher chamada 'Mãos Desenhando. É uma gravura em que duas mãos desenham uma a outra ao mesmo tempo e que descreve bem essa ideia. Uma coisa muito legal de estarmos conectados, em rede e às tecnologias, é que elas tornam as coisas muito mais visíveis, e cada vez mais elas serão visíveis. A experiência da transparência promove isso, ela revela o lado podre, mas também revela o lado forte. Por exemplo: corrupção seria muito fácil de resolver se simplesmente os processos fossem produtos claramente visíveis, menos burocráticos, de ponta a ponta. E o fato de estarmos conectados, de haver fortalecimento da transparência e de haver pessoas jovens que têm uma causa, enfim, essas coisas proporcionam isso. Essa exposição fortalece as instituições que são éticas e enfraquece as que não são, o que acaba nutrindo esse ciclo virtuoso e vai gerando também a confiança institucional, interpessoal.

É interessante, porque funciona como um motor do desmonte do sistema que se estabeleceu antes dessa transformação, certo?

Sim, tanto é que alguns sistema de gestão, como os partidos políticos, estão totalmente desacreditados. Mas, mesmo no contexto da gestão pública, o que notamos é que há mecanismos que estão se revelando mais eficientes do que jamais foram. Essa transição não quer dizer uma anarquia, mas o fortalecimento de ferramentas de gestão e de instituições que ficavam em segundo plano. Elas se fortalecem porque vão se afastando de uma identidade personalista. Os resquícios de coronelismo que existem na política, por exemplo, estão enfraquecendo e dão espaço a uma identidade mais coletiva.

A mudança de um perfil nas gerações mais jovens, que é mais vigilante e consciente das ferramentas de transparência também funcionam como um motor para esse ciclo de virtude?

Sem dúvida. Hoje uma das grandes diferenças que existem é que o ideal de vida das pessoas já não está tanto em ganhar dinheiro. Dentro do Ministério Público, por exemplo, podemos constatar que há pessoas que não querem fazer pé de meia, querem fazer história, querem, de fato, dormir felizes pelo que fizeram. Em todas as áreas tem isso, tem muita gente que está querendo, de fato, um outro mundo. E agora isso é possível, existem as ferramentas para isso. E a partir daí a gente começa a gerar os círculos virtuosos.

Você pode citar um exemplo de modelo de gestão que foi empoderado na atualidade?

De certa forma, a Polícia Federal é uma destas instituições. Se a gente parar para pensar, polícia é sinônimo de medo no Brasil, mas a Polícia Federal, que não é exatamente uma polícia de repressão popular, tem desarticulado muitos esquemas de corrupção, que finalmente tornou-se visível. Tenho um exemplo melhor. Existe um movimento muito bonito chamado 'Sharing Cities', que são cidades em que as prefeituras são dedicadas a adotar a economia compartilhada, ou seja, o compartilhamento de infraestrutura, e a economia colaborativa, que é a gestão em colaboração entre as diversas áreas da sociedade. É muito bonito constatar, por exemplo, Portland, nos Estados Unidos. Eles viram que a questão da água só é solucionada com o plantio de árvores, mas o governo não tem condições de fazer os plantios. Foi então que eles perceberam que o governo tem condições de fazer campanhas e articulações para facilitar esse processo. Quer dizer, o poder público passa a ser um articulador de várias áreas para facilitar esse processo que ele não dá conta. O grande capital dele é o capital social, que junta e facilita processos.

Esta é uma das pistas do que futuramente deverá tomar lugar dos modelos de gestão?

Claro! Essas experiências estão acontecendo, ainda, em escala pequena. Mas, se você pegar de 2011 para cá, na Espanha, no Oriente Médio, no Occupy Wall Street, na verdade desde 2008, quando houve aquela crise mundial, começamos a ter experiências muito interessantes de gestão compartilhada. Já há metodologias e ferramentas para isso. Ao contrário do que se supõe, o coletivo é muito inteligente. Olha a Wikipedia! Ela é incrível e é construída coletivamente! A inteligência e o bom senso coletivo são incríveis, se a gente fizer ferramentas para que isso tudo possa ser aplicado. 

Que tipos de ferramentas?

São ferramentas muito simples! Pensa no Waze (rede social de navegação GPS em trânsito): ele não diz qual o caminho mais tranquilo e onde está congestionado? Então, imagina o Waze de recursos. Imagina o Waze de acesso a educação que diga, por exemplo, onde parou, onde andou, onde é pouco... Daqui a pouco a gente vai ter ferramenta para tudo isso.

Que entidades fazem esses estudos?

São várias, inclusive aqui no Brasil. Mas, especificamente sobre esses modelos de gestão, gosto do que a P2P Foundation faz. São estudos incríveis nesse sentido. Uma referência do que que poderia ser modelo de governo é o FLOK Society Project, que desenvolve uma mudança na concepção dos projetos de matriz produtiva no sentido de uma sociedade livre, aberta e baseada em conhecimento comum, no Equador. Eles estão organizando conjuntos de ferramentas para a transição para os 'commons', ou seja, o 'bem comum'.

Hoje temos alguns projetos bem sucedidos nesse contexto coletivo, ao menos no campo da economia. Temos startups como o Über, que põe o usuário em contato direto com os automóveis de passageiros com condutor, e o AirBNB, que propõe uma alternativa a hotéis por meio do compartilhamento da própria casa. Você pode falar sobre esses processos sustentáveis?

Os processos que são sustentáveis e que são voltados ao bem comum, na verdade, são a combinação de quatro 'economias'. A primeira é a economia criativa, que é baseada em recursos intangíveis. É como se fosse a economia do cuidar, da inteligência, da criatividade, da saúde, dessas coisas cuja matéria-prima não vem do meio ambiente. A segunda delas é a economia compartilhada, ou seja, a economia de compartilhamento em que não é preciso possuir coisas, já que elas podem ser compartilhadas. Quem hoje em dia vai montar um escritório se pode ter um co-working? Você não apenas otimiza a tua infraestrutura como você tem toda a troca de companhia, social. A terceira economia é a colaborativa, que é diferente da compartilhada, porque ela tem a ver com a gestão, cada um fazendo um pedacinho. Um futuro sustentável não é um futuro onde o governo resolve nossos problemas. Ele facilita e articula, mas quem vai resolver é todo mundo junto. A Wikipédia, por exemplo, é isso. E finalmente tem a economia de multimoedas, que é perceber que recursos não são só finanças. Gerar riquezas a partir de commodities é bem século XX. O futuro prevê foco no serviço. Neste contexto, do ponto de vista infraestrutural, reconhecimento é finança. Toda a infraestrutura tecnológica é finança. Os espaços ociosos, também. Imagina o tanto de espaço ocioso que a gente tem, não ia precisar construir mais nada... Quer dizer, a questão, neste caso, não é a estrutura, mas o processo de uso desses excedentes.


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