Aplicação da Lei Maria da Penha depende da participação da sociedade, aponta a juíza


Midiamax

Por Guilherme Cavalcante

Em 1983, na capital cearense, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes só não morreu em decorrência das agressões do marido, que chegou até a disparar um tiro em sua coluna, porque fingiu-se de morta. Em busca de justiça pelas agressões que sofria continuamente, ela só encontrou apoio na  Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que penalizou o Brasil a desenvolver uma legislação específica que atuasse na inibição da violência doméstica, bem como desenvolvesse ações de proteção às mulheres em situação de vulnerabilidade. Assim surgiu, há exatos 10 anos, a Lei Maria da Penha, um verdadeiro marco na sociedade brasileira no tocante à defesa das mulheres. Para comentar o papel da referida legislação, bem como suas perspectivas, o Jornal Midiamax conversou com a juíza Jacqueline Machado, titular da primeira Vara de Medidas Protetivas do país, que atua junto à Casa da Mulher Brasileira na garantia de medidas protetivas às vítimas de violência doméstica em Campo Grande. Em entrevista, a magistrada destacou os avanços da legislação e também comentou os desafios para a plena implantação da lei na sociedade brasileira. Confira.

A Lei Maria da Penha completa 10 anos neste domingo (7), sendo o principal mecanismo de defesa da mulher no ordenamento jurídico brasileiro. De que forma esta legislação estabelece um novo paradigma na sociedade? O que efetivamente muda, a partir da lei, em relação ao combate à violência contra a mulher?

A Lei Maria da Penha realmente estabeleceu um novo paradigma, pois rompeu com a inação e o silêncio do Estado brasileiro em uma política judicial de proteção efetiva às mulheres vítimas de violência no âmbito de suas relações de intimidade em razão especificamente do gênero. Nunca é demais lembrar que a Lei Maria da Penha somente surgiu após uma luta incansável de Maria da Penha que levou seu caso até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (da OEA), que pela primeira vez acatou uma denúncia de violência doméstica, onde o Estado brasileiro foi punido com a recomendação expressa da criação de uma lei específica para este tipo de violência contra a mulher. As mudanças são totais, pois é com a Lei Maria da Penha que se instituiu um sistema de garantias para a mulher vítima de violência doméstica. No meu ponto de vista, além do estabelecimento de uma punição específica para a agressão sofrida em razão de gênero, um dos maiores avanços foi a instituição de diretrizes, princípios, normas e políticas públicas de proteção, medidas, instrumentos e mecanismos de caráter assistencial, protetivo e preventivo da violência de gênero, bem como a criação de uma rede de atendimento integrada para a vítima.

A aplicação de lei precisa ser garantida ainda em muitos espaços. Mesmo com 10 anos com a lei, a sociedade brasileira continua extremamente machista e misógina. Neste contexto, pergunto: a lei é insuficiente para alcançar o campo da educação? Esta lacuna está descoberta?

Qualquer lei, por melhor que seja, não muda, por si só, as pessoas e nem a sociedade. Ela é instrumento que auxilia no processo de mudança. A pretensão de que uma alteração legal mude completamente um estado de coisas tão complexo como é a violência doméstica – que perpassa por questões culturais e psíquicas inerentes a sociedade atual e ao próprio ser humano – seria vender uma ilusão. A mudança efetiva depende também de políticas públicas gerais (de educação, saúde, etc.) e específicas (de educação sobre a questão de gênero, de acompanhamento psicológico para as vítimas e agressores, etc.) e a efetiva participação da sociedade por meio de suas várias instituições (igrejas, partidos políticos, etc.) e de cada um individualmente, para que seja compreendida a gravidade do problema e então haja a difusão de uma cultura de não violência contras as mulheres. Apesar de setores da sociedade propagarem a opinião do senso comum de que não há uma cultura do estupro ou da violência contra a mulher, os dados da vida real são impactantes: no Brasil há 1 denúncia de violência contra a mulher a cada 7 minutos; a cada 11 minutos uma mulher é estuprada; a cada 1h30min uma mulher é morta em razão exclusivamente do fato de ser mulher. Ainda que efetivamente a maior parte das vítimas seja vulnerável economicamente, a violência contra a mulher não fica restrita a determinadas classes sociais.

Mulheres periféricas e negras continuam sendo as principais vítimas dessa violência. De que modo o poder público pode garantir que a lei chegue até essas mulheres?

Os dados que relatei, de fato, estão relacionados a este segmento. A maior parte das vítimas são mulheres negras e da periferia e isso decorre principalmente da maior das mazelas de nosso país, a desigualdade social. Ampliar a rede de atendimento e do sistema judicial de garantias, a exemplo da Casa da Mulher Braseira, são alternativas para que a Lei Maria da Penha tenha um maior alcance.

A senhora é juíza da primeira Vara especializada em medidas protetivas do Brasil, levando em conta, claro, que ela dá assistência à primeira Casa da Mulher Brasileira do país. Qual a importância dessa vara e como ela proporciona mais segurança às mulheres em situação de vulnerabilidade?

A criação de uma vara com competência exclusiva para a análise das medidas protetivas de urgência em favor da mulher é uma marco como mecanismo de proteção às vítimas, bem como o projeto da Casa da Mulher Brasileira, onde estão presentes todos os órgãos de defesa da vítima e que asseguram um atendimento especializado, humanizado e mais  célere e eficaz. A atuação conjunta dos órgãos que compõem a casa atualmente proporcionam à mulher em situação de violência uma atendimento emergencial seguro, rápido e eficaz. A Vara, por sua vez, por ter competência também para analisar as prisões em flagrantes e realizar as audiências de custódia consegue efetivar a proteção integral da mulher, eis que nenhum agressor será colocado em liberdade sem que seja analisado o pedido de medidas protetivas de urgência.

É possível afirmar, na visão de magistrada, que a Lei ajuda a empoderar as mulheres no incentivo à denúncia, levando em conta que atualmente temos mulheres de estratos sociais elevados entrando na estatística de demanda reprimida?

A Lei Maria da Penha foi o elemento fundamental para impulsionar este empoderamento. Porém, no meu entender, será o bom funcionamento deste sistema de garantias que proporcionará uma maior confiança e segurança nas vítimas, tanto em denunciar como em saber que ela será atendida de modo humano, especializado e eficiente. Mas há muito espaço para evoluir e melhorar.

Recentemente o Jornal Midiamax trouxe reportagem sobre o imbróglio em torno da PLC 07/2006, a qual foi criticada pela senhora enquanto magistrada. Qual seria, portanto, uma perspectiva de evolução da Lei Maria da Penha? O que mais ela poderia abranger?

De fato, conforme apontei na reportagem, o PLC 07/2016 é um retrocesso. Parte de uma premissa equivocada e tenta gerar uma falsa esperança de maior efetividade. O fato é que as alterações implicam, mais uma vez, no retorno da noção de que o problema da violência doméstica é uma questão de polícia. E justamente foi esta a razão da criação de todo o sistema de proteção constante da Lei Maria da Penha, fazer com que esta violência não seja tratada com uma mera questão de polícia, já que é algo muito mais complexo e que necessita de atendimento especializado e amplo, o qual as delegacias do Brasil, infelizmente, não podem oferecer. Mesmo sem comentar o aspecto jurídico da flagrante inconstitucionalidade de determinados dispositivos do projeto de lei, bem como de questões que envolvem determinadas classes de servidores públicos, me parece que o projeto é também derivado de uma visão distorcida de uma política exclusivamente punitiva, policialesca, da atual conjuntura conservadora de nosso Congresso Nacional, que não reconhece a real dimensão e importância da questão de gênero.

Qual sua opinião sobre o papel da educação de gênero em sala de aula no combate à violência e à discriminação. Esse seria um caminho seguro para desconstruir o machismo e a misoginia?

A educação tem um papel fundamental na desconstrução de preconceitos. Fica evidente no caso brasileiro que o preconceito faz parte de nossa sociedade. Ela é reflexo do nosso modo de colonização, que reproduz os valores de uma sociedade estamental, patriarcal, machista e sexista. Assim, é imprescindível que a educação formal, nas escolas, contribua com este papel de desconstrução ou de amenização destes preconceitos. Uma sociedade plural e democrática, como é a brasileira, não pode conviver com preconceitos. Há a necessidade de reconhecimento e respeito do outro em sua dignidade seja ele rico ou pobre; negro, branco ou índio; católico, evangélico ou ateu; homem, mulher, gay, lésbica, transexual, transgênero. Não querer discutir estes temas, ou tentar inclusive proibi-los é, por si só, um discurso preconceituoso e intolerante. Muito menos se pode pensar em instituir uma política pública, por lei, proibindo esta discussão.


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