'Suicídio deve ser um problema enfrentado abertamente', diz psiquiatra


Dourados News

Psiquiatra enfatiza que o suicídio precisa ser debatido e ações de prevenção divulgadas- Foto: Divulgação

A campanha "Setembro Amarelo" é uma ação mundial de conscientização sobre a prevenção do suicídio, com o objetivo de alertar a população sobre a realidade desse tema, que ainda é considerado tabu em muitas esferas sociais.

Tendo em vista o debate desse tema, o site Dourados News reproduz a entrevista com o médico e professor de Psiquiatria da UFGD, José Roberto Martinez, chefe da Unidade de Atenção Psicossocial do HU-UFGD.

Para ele, uma boa opção é discutir abertamente o problema com os pacientes e a sociedade, oferecendo informações úteis para evitar que o suicídio ocorra. Em casos em que haja demonstração de tal vontade, o médico afirma que é essencial uma avaliação especializada.

Ele cita que são vários os fatores que podem influir fortemente no desejo de abreviar o tempo de vida física tais como: desesperança, falta de perspectiva, solidão, limitações físicas, entre outros, o que torna necessário a divulgação de informações tendo em vista a prevenção.

No Brasil, o Centro de Valorização da Vida (CVV), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) foram as primeiras entidades a difundirem a campanha instituída em 2014 que hoje, está presente em instituições de saúde de todo o País, inclusive no Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados (HU-UFGD).

Confira a entrevista na íntegra:

A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que, por ano, cerca de 800 mil pessoas cometem suicídio e que o Brasil é apontado como o oitavo país no mundo com mais ocorrências. A que se deve tal fato? Será que atualmente se fala mais sobre o assunto e, por consequência, tem maior visibilidade ou realmente esse número vem aumentando ao longo das décadas?

J.R.M- As estatísticas variam de acordo com as épocas, circunstâncias e eventos sociopoliticossociais. Os países do leste europeu, por exemplo, apontaram altos índices de suicídio – mais de 40 por cem mil pessoas – a partir de 1990, e tal fato coincide com uma severa crise socioeconômica que afetou aquela sociedade à época. No Brasil, em 2010, o índice de suicídio chegou a mais de 140 por cem mil habitantes na comunidade indígena Guarani Kaiowá, da "reserva" de Dourados, época em que os indicadores registravam aproximadamente dois casos no nordeste e oito em Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul, e a média brasileira era de seis suicídios por cem mil pessoas. Já as causas do suicídio são variadas e decorrem de uma interação entre fatores predisposicionais genéticos e fatores precipitantes perigenéticos, tais como: desgosto pela vida, solidão, dificuldades financeiras, perdas afetivas e financeiras, celibatarismo, depressão afetiva por conflitos psicossociais e doenças graves como câncer incurável, drogadição, esquizofrenia, etc. Provavelmente, os índices tendem a aumentar em épocas de crise global, com exceção dos locais em guerra, onde o medo constante de morte iminente tende a diminuir tais indicadores. O aumento de suicídios tem uma correlação forte com o tipo de cultura e os momentos de crise e de adaptação a novas situações de carência e miséria, guerras, imigrações forçadas, fome, abuso de drogas, etc. A miséria moral e a falência financeira de indivíduos abastados também pode ser motivo de suicídio direto e indireto.

Ainda conforme relatório da OMS, pessoas acima dos 70 anos são as que mais cometem suicídio. Quais fatores podem ser desencadeadores da intenção de suicídio na população mais idosa?

J.R.M- São vários os fatores que podem influir fortemente no desejo de abreviar o tempo de vida física restante na idade senil: a desesperança ou a falta de perspectiva de vida futura, a concepção materialista de finitude da existência, a solidão decorrente do estilo de vida moderno e o abandono familiar, as limitações físicas, as doenças crônicas, as dores constantes decorrentes de doenças incuráveis, a certeza da morte e descrença na vida futura espiritual, entre outras.

Além da depressão, que é o fator que mais leva as pessoas a cometerem suicídio, que outras causas podem contribuir para que a pessoa chegue ao ponto de tirar a própria vida?

J.R.M- Em primeiro lugar, não se deve confundir tristeza com estado depressivo patológico crônico e com o sintoma depressivo. É necessário definir o que é "depressão". O sintoma depressivo ocorre em vários tipos de doenças mentais classificadas de acordo com o tipo e a intensidade: transtorno afetivo bipolar na fase depressiva, episódios depressivos (leves, moderados ou graves), transtorno depressivo recorrente (variações de humor que alternam o estado psíquico de bem estar com períodos de leve depressão), ciclotimia (depressão leve que se alterna com exaltação leve do afeto), distimia (depressão leve crônica), transtorno psicótico misto esquizoafetivo (sintomas afetivos com esquizofrênicos), depressão pós-esquizofrênica, depressões químicas por drogadição, depressão por doenças gerais nas infecções e doenças graves, entre outras. De modo geral, a causas são biopsicossociais, econômico-financeiras e político-culturais. O que varia é o peso que cada fator desencadeante externo exerce sobre a estrutura psíquica individual (personalidade humana) e a capacidade de resistência, enfrentamento e adaptação adequados ou inadequados no enfrentamento da crise (resiliência versus fuga pelo suicídio).

Há um tabu com relação ao tema, principalmente entre os veículos de imprensa, de que não se deve falar sobre suicídio, pois pode incentivar outras pessoas a o fazerem. Em alguns meios é até proibido publicar notícias com a temática do suicídio ou deve-se omitir a causa da morte. Como você avalia esse comportamento? Que abordagem seria mais adequada para se falar do tema?

J.R.M- É exatamente o oposto o que se propõe para o enfrentamento do problema do suicídio: falar abertamente e de modo natural sobre as suas causas e as soluções práticas para evitá-lo, dente elas a psicoeducação. De um ponto de vista jurídico o suicídio não é um direito do livre-arbítrio individual e, sim, um crime cuja punição coincide com uma pena máxima, já que a vida pertence juridicamente ao estado e não ao indivíduo. Além disso, não está provado cientificamente que a vida psíquica deixa de existir com a vida orgânica, algo que, nem a ciência, nem a religião provaram com evidência absoluta e é motivo de pesquisas sérias e de ponta no mundo inteiro. É uma pena que a mídia se preocupe mais com o sensacionalismo dos casos de indivíduos homicidas do que com a divulgação de informações sobre prevenção de casos de doença mental associada ao homicídio seguido de suicídio.

Existem, também, alguns mitos em relação ao comportamento suicida, como por exemplo a ideia de que as pessoas que ficam ameaçando se matar não vão realmente cometer suicídio, ou "quem quer se matar se mata mesmo, sem ficar anunciando". Com relação a esses "alertas", quais são os sinais que a família ou as pessoas próximas devem observar para poder ajudar quem está nesse processo da ideação suicida?

J.R.M- Há indivíduos que ameaçam suicidar-se como forma de pressão ou chantagem para obterem o que querem. Há outros que não querem morrer, mas acabam morrendo por acidente ao calcular mal o método de chantagem. Há aqueles que cancelam o ato suicida quando percebem que os familiares estão chegando e deixam para praticar o ato em outro momento. Em todos os casos, a falta de prevenção em indivíduos predispostos e de tratamento adequado pode resultar no ato suicida que poderia ser evitado. Em todos os casos, é necessário uma avaliação especializada para se identificar os fatores de risco e o tipo de doença psíquica, e o preparo dos familiares para identificarem a tempo o ato iminente: ideias de ruína, isolamento social, perda de apetite, sonolência exagerada, distanciamento de atividades laborais e sociais, exposição a fatores de risco, etc.

O suicídio pode ser prevenido? Existe, no Brasil, algum plano de ação na área de saúde mental para evitar que casos ocorram? Como deveria ser feita, na rede de saúde pública, uma tática para que essa prevenção seja feita?

J.R.M- Com o fechamento da maior parte dos leitos psiquiátricos hospitalares e com a política nacional de implantação substitutiva de tratamento em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Ambulatórios de Saúde Mental e Unidades Básicas de Saúde, as internações psiquiátricas breves de urgência ocorrem prioritariamente em hospitais gerais. A prevenção do suicídio começa em casa ou em qualquer serviço da rede de saúde mental. Muitos casos de suicídio poderiam ser evitados em casa, se os familiares do paciente em risco soubessem prevenir a ocorrência. A falta de programas de política pública voltados à prevenção do suicídio e a não implementação dos programas existentes, aliados à falta de capacitação e de empenho dos profissionais da área no serviço público, têm levado a uma carência de atendimento de casos graves suscetíveis. As instituições religiosas também atuam na prevenção do ato suicida através de conceitos éticos pautados na moral evangélica.


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